Althusser ou Garaudy? O calcanhar de Aquiles do marxismo
Por: Hoje Macau 23 Jan 2014
A grande bomba filosófica, entre nós, nesse início de 1969, foi a chegada do estruturalismo!
Numa Faculdade de Letras em que ninguém sabia o que era tal coisa, a não ser de ouvir falar como algo de estrambótico e certamente subversivo, a publicação, pela Portugália, da antologia Estruturalismo, 400 páginas de textos do Foucault, Pouillon, Chatelêt, Derrida, Lévi-Strauss, Thion, Althusser, Godelier, Badiou, Lacan, Miller, Milner, Sartre, Barthes, Sebag e Gerard Genette, selecionados e introduzidos por Eduardo Prado Coelho, logo em 1968, repetindo agora as respetivas ondas mentais, era um vendaval aterrador para os miasmas académicos, que mais não faziam do que repetirem a sua própria escanzelada formação e que nunca, fechados na sua concha, tinham sido confrontados com os desafios da contemporaneidade.
Para mais, sobretudo Louis Althusser, chegava em força tanto com o Lire Le Capital, em colaboração com Étienne Balibar, divulgado pela petite Maspero, como sobretudo com o Pour Marx, editado em francês em 65, mas que os brasileiros da Zahar logo traduziram e publicaram, ainda em 1967, com o título dissimulado de Análise crítica da teoria marxista, e que se obtinha ou encomendava na UNICEPE, com a eficácia que resultava do zelo administrativo do Francisco Melo.
Para quem quisesse já não faltava informação…
Ora embora o estruturalismo fosse a corrente de pensamento filosófico mais em ascensão, na Europa, no decorrer da década de 60, por parte dos intelectuais marxistas em orfandade ideológica, depois da invasão soviética de Budapeste e agora, no findar da década, ainda muito mais, depois do vilipendioso esmagamento da Primavera de Dubcek, em Portugal, era muito pouco conhecido, salvo raras exceções como o caso de Saussure, já ensinado na primitiva Faculdade de Letras do Porto dos anos 20 e lecionado por Teixeira Rego, mas que era um professor excepcional de uma escola sem paralelo. A verdade é que o estruturalismo, seja lá o que for, porque sendo tanta coisa é bastante difícil, ou mesmo impossível, dizer o que é em definitório, não surge necessariamente acoplado a um marxismo ou sequer a um pós-marxismo, pois adstrita-se com facilidade aos terrenos da psicanálise, da linguística, da sociologia ou da arquitetura de onde será mais genuinamente oriundo.Todavia, perto de nós, na altura, foram sem dúvida Althusser e Badiou que mais se impuseram, sobretudo o primeiro, procurando uma interpretação ou uma leitura estruturalista do marxismo.
Para se perceber a que distância estávamos da informação, é curioso e significativo que embora eu conhecesse o Badiou como um soixante-huitard maomizante ou mesmo maoísta, que não conheci pessoalmente mas me foi apontado em Paris, não me passava pela cabeça que Althusser pertencesse ao Comité Central do PCF o que, aliás, com grande surpresa minha, só vim a saber quando me apercebi de que a La Pensée – revue du rationalisme moderne era um revista ligada ao PCF.
Até porque tinha ouvido falar muito do conteúdo filosófico marxológico dos seus trabalhos e já tinha feito algumas leituras em Maio de 1968, logo quando surgiram, sob a sua égide ou pelo menos à sua sombra, tal gauche altusserienne, os Cahiers marxistes-leninistes e a UJC m-l – Union des Jeunesses Communistes marxistes-leninistes, atacando feramente a UEC – Union des Étudiants Communistes do PCF.
Contudo a presença de Althusser no PCF era também, no momento, turbulenta, quase explosiva, estando sob intensa vigilância, pois embora tudo andasse à sua volta – tudo querendo dizer mesmo quase tudo – fosse o Macherey ou o Rancière, o Badiou ou o Poulantzas, o Debray ou o Bernard-Henri Levy, também em seu torno gravitava o areópago que se desenhava de Foucault a Bourdieu e de Derrida a Michel Serres, alguns dos quais seus alunos, com Deleuze lá por perto, e que se afirmaria com exuberância posteriormente…
A Louis Althusser, alguém nominou o “doce mestre da ciência pura e dura” e com toda a propriedade, tal a leveza e elegância do seu estilo e a radicalidade, mesmo brutalidade, com que pretendeu limpar a conceptualidade marxista de qualquer vislumbre de plasticidade ideológica.
Até meados dos anos 50, a intelectualidade europeia marxista ou marxizante, na generalidade, aguentou os ataques ao estalinismo, considerando-os ataques de classe ou imperialistas, mas ficou, no plano político, como já indicámos, definitiva e profundamente esvaziada, órfã e carente pelos acontecimentos pós-estalinistas de Budapeste 1956, para não falarmos dos de Praga de 1968.
Paralelamente, nos planos filosófico e teórico, persistia desde há muito, algum mal estar pela insuficiente clareza da resposta de Engels, aos que acusavam o marxismo de considerar a economia como único determinante da cultura ou como seu determinante automático, para não dizer mecânico, que se agrava quando a história dos acontecimentos aponta, de forma cada vez mais convincente, para o falhanço da nova sociedade e do homem novo.
Falamos de novo, agora com mais profundidade e com o auxílio da competente tradução de José Barata-Moura, da Carta enviada de Londres, de 21-22 de Setembro 1890, a J. Bloch, onde F. Engels, diz que ”o momento em última instância determinante [in letzter Instanz bestimmende], na história, é a produção e reprodução da vida real.” Que nem Marx nem ele alguma vez tinham afirmado algo diferente e que se agora alguém vinha distorcer isso dizendo que o momento económico era o único determinante, transformava aquela proposição numa frase abstrata e absurda.
Prossegue Engels: “A situação [Lage] económica é a base [Basis], mas os diversos momentos da superstrutura [Uberbau] — formas políticas da luta de classes e seus resultados: constituições estabelecidas pela classe vitoriosa uma vez ganha a batalha, etc., formas jurídicas, e mesmo os reflexos [Reflexe] de todas estas lutas reais nos cérebros dos participantes, teorias políticas, jurídicas, filosóficas, visões [Anschauungen] religiosas e o seu ulterior desenvolvimento em sistemas de dogmas — exercem também a sua influência [Einwirkung] sobre o curso das lutas históricas e determinam em muitos casos preponderantemente [vorwiegend] a forma delas. Há uma ação recíproca [Wechselwirkung] de todos estes momentos, em que, finalmente, através de todo o conjunto infinito de casualidades (isto é, de coisas e eventos cuja conexão interna é entre eles tão remota ou é tão indemonstrável que nós a podemos considerar como não-existente, a podemos negligenciar), o movimento económico vem ao de cima como necessário. Senão, a aplicação da teoria a um qualquer período da história seria mais fácil do que a resolução de uma simples equação do primeiro grau”.
“Nós fazemos a nossa história nós próprios, mas, em primeiro lugar, com pressupostos e condições muito determinados. Entre eles, os económicos são finalmente os decisivos. Mas também os políticos, etc., mesmo a tradição que assombra as cabeças dos homens, desempenham um papel, se bem que não o decisivo.”
Não por acaso, logo em seguida, Engels sente necessidade de exemplificar, nas singularidades do concreto histórico da formação dos estados na Alemanha, o que não é um bom sinal de clareza conceptual dos universais que, se o fosse, se imporia por si.
Para continuar: “Em segundo lugar, porém, a história faz-se de tal modo que o resultado final provém sempre de conflitos de muitas vontades individuais, em que cada uma delas, por sua vez, é feita aquilo que é por um conjunto de condições de vida particulares; há, portanto, inúmeras forças que se entrecruzam, um número infinito de paralelogramas de forças, de que provém uma resultante — o resultado [Ergebnis] histórico —, que pode ele próprio, por sua vez, ser encarado como o produto de um poder que, como todo, actua sem consciência e sem vontade. Pois, aquilo que cada indivíduo quer é impedido por aquele outro e aquilo que daí sai é algo que ninguém quis. Assim, a história até aqui decorreu à maneira de um processo natural e está também essencialmente submetida às mesmas leis de movimento. Mas, de que as vontades individuais — em que cada um quer aquilo a que o impele a sua constituição física [Körperkonstitution] e circunstâncias exteriores, em última instância económicas (quer as suas próprias [circunstâncias] pessoais quer as gerais-sociais) — não alcançam aquilo que querem, mas se fundem numa média total, numa resultante comum, daí não deve, contudo, concluir-se que elas são de pôr como=0. Pelo contrário, cada uma contribui para a resultante e está, nessa medida, compreendida nela.”
E depois de procurar mostrar que o que acabava de dizer estava bem ínsito nos trabalhos de Marx, Friedrich Engels sente necessidade de dar uma justificação em que, no fundo, mesmo que veladamente, assume alguma obscuridade das explicações anteriores, dizendo:
“Marx e eu temos, nós próprios, que ser culpados, em parte, de que, por vezes, seja pelos mais jovens dado mais peso ao lado económico do que o que lhe cabe. Nós tínhamos de acentuar, face aos adversários, que o negavam, este princípio principal [Hauptprinzip] e nem sempre havia tempo, lugar e oportunidade para dar a devida importância aos restantes momentos participantes na acção recíproca. Mas, assim que se tratava da exposição de uma secção histórica, portanto, da aplicação prática, as coisas alteravam-se, e aí nenhum erro era possível. Infelizmente, é, porém, demasiado frequente alguém acreditar que entendeu completamente uma teoria nova e que a pode manejar sem mais logo que se apoderou dos seus principais princípios [Hauptsätze], e deles também nem sempre correctamente. E eu não posso poupar a esta censura muitos dos novos «marxistas», e também aqui se cometeram coisas espantosas…”
Mas para a exigência conceptual do fim dos anos 60 a obscuridade não diminuiu, antes pelo contrário, a tal ponto que, quase dois séculos depois da carta de Engels, a problemática do sistema de relações entre a chamada infraestrutura e a supraestrutura, avivada pela intuição de que aí se situavam os problemas do marxismo na fase de transformação do mundo, ou seja dos seus sucessos e insucessos históricos, reduzida atualmente ao Oriente, longe de ter sido ultrapassada, tornava-se cada vez mais premente.
Um problema que se nos colocou, com a vantagem da juventude e da parca formação: primo, o de saber como um termo das engenharias, infraestrutura, tinha chegado às filosofias; secondo, o que teria transportado, da carga semântica inicial, para o seu sentido, lembrando-nos da reflexão epistemológica de Bachelard, a propósito da garrafa de Leiden, em que o filósofo de Dijon descreve os obstáculos à compreensão funcional da garrafa no seu volume exterior para lá da ancestral capacidade interior de conter líquidos; tertio, em que dimensões esse transporte semiótico distorceria a pretensão conceptual do saltar da engenharia para a filosofia.
Porque o conceito que se vislumbra em Marx e Engels não é o mesmo do da engenharia civil, um conceito horizontal, em torno dos fornecimentos básicos como água, eletricidade, saneamento, ou redes viárias e ferroviárias, que são condições sine qua non para que a vida urbana se edifique, mas nem a provocam, nem muito menos a determinam.
Pelo contrário no conceito aparentemente horizontal de infraestrutura, pretendem Marx e Engels designar um conjunto de estruturas (ou de simples vetores?), determinantes em última instância, de direção vertical e sentido ascensional, que se poderão agrupar, em generalização, na estrutura económica, no sentido apenas de uma base determinante [Basis], ou infraestrutura [Unterbau] , se é que mesmo esta tradução corrente é legítima e não deveríamos ficar apenas por base construtora ou noção quejanda.
Ora Louis Althusser e Étienne Balibar, nas obras que então nos chegavam, embora datassem, na edição francesa, de 1965, introduziram um desenvolvimento engenhoso desta determinação pela economia em última instância que Engels, já por si, construíra, no referido texto de 1890, que é de sete anos após o falecimento de Marx.
Produziram a distinção do conceito de determinação e do de dominação, de uma forma que permitiu ao de economia desdobrar-se na caraterização do modo de produção capitalista: a estrutura deste, englobaria as relações de produção e as forças produtivas, com primado daquelas sobre estas, permitindo assim a determinação em última instância da dominação da instância económica, em qualquer tipo de sociedade capitalista. Dito de outro modo, sendo a economia determinante em todos os tipos de sociedade, ela determina apenas a instância – a económica, ideológica ou política – em que se torna dominante, em cada tipo de sociedade: a determinação pela economia resultaria, na Antiguidade clássica, na dominação da instância política, na Idade média, na dominação da instância ideológica na vertente religiosa, tal como no capitalismo e apenas no capitalismo a determinação pela economia resultará na dominação da instância económica.
Mutatis mutandis, é o que o grego Nikos Poulantzas, que também foi aluno do Althusser em Paris, escrevia em 68, numa obra que o José Oliveira e o Vítor Sinde editaram, em português, na Portucalense, pouco depois, e que se tornou mais um precioso instrumento de reflexão e combate na frente ideológica: “a determinação, em última instância, da estrutura do todo pelo económico não significa que o económico aí detenha sempre o papel dominante. Se é verdade que a unidade, representada pela estrutura como dominante, implica que todo modo de produção possui um nível ou uma instância dominante, de facto o económico só é determinante na medida em que atribui a esta ou àquela instância o papel dominante.”
Se nos debruçarmos no Sobre a contradição de Mao Zedong e o cotejarmos com este texto de Althusser, é muito difícil não acolher a correspondência substancial, mais ainda do que as expressões nocionais ou conceptuais, entre o pensamento dialético do líder do PCCh e o deste membro do CC do PCF, percebendo a que ponto parecem identificarem-se, para não usar a expressão, tão ao gosto português, de parecer um fato feito à medida…
Sobre a dinâmica da contradição principal e do aspeto principal da contradição, tinha escrito Mao trinta anos antes:
“O aspeto principal e o aspeto secundário da contradição convertem-se um no outro, mudando consequentemente o caráter dos fenómenos. Se, num processo determinado ou numa etapa determinada do desenvolvimento da contradição, o aspeto principal é A e o aspeto secundário é B, numa outra etapa ou num outro processo do desenvolvimento, os papéis invertem-se. Essa mudança é função do grau de acréscimo ou decréscimo atingido pela força de cada aspeto na sua luta contra o outro, ao longo do desenvolvimento do fenómeno.”
Sem exagerar em citações, valerá a pena ainda ilustrar a pretensão desta convergência entre o grupo de Alhusser, Balibar, Macherey e Badiou com mais o seguinte extrato do texto de Mao, embora este requeira uma leitura integral:
“Seja em que fenómeno for, há sempre uma contradição entre o velho e o novo, o que determina uma série de lutas de curso sinuoso. Dessas lutas resulta que o novo cresce e eleva-se à posição dominante, enquanto que o velho, pelo contrário, decresce e acaba por morrer. Assim que o novo conquista uma posição dominante sobre o velho, o fenómeno velho transforma-se qualitativamente num novo fenómeno. Daí resulta que a qualidade dum fenómeno é sobretudo determinada pelo aspeto principal da contradição, o qual ocupa a posição dominante. Logo que o aspeto principal da contradição, o aspeto cuja posição é dominante, muda, a qualidade do fenómeno sofre uma mudança correspondente.”
E se Mao já há pouco tinha reconhecido que, em determinadas circunstâncias, a teoria e a superestrura podiam desempenhar o papel principal e decisivo, um pouco mais à frente, afirma textualmente que “quando a superestrutura (política, cultura, etc.) entrava o desenvolvimento da base económica, as transformações políticas e culturais convertem-se no principal, no decisivo” e que “ao mesmo tempo que reconhecemos que no curso geral do desenvolvimento histórico o material determina o espiritual, o ser social determina a consciência social, reconhecemos e devemos reconhecer a reação do espiritual sobre o material, da consciência social sobre o ser social, da superestrutura sobre a base económica.”
De frisar que na teoria altusseriana de não-correspondência entre as forças produtivas e as relações de produção, estas últimas são parte constituinte da estrutura económica, são portanto internas, o que abriria em seguida, nos 70, um outro debate contra os que, de cultura anglo-saxónica, como G.A.Cohen, defenderiam que as forças produtivas não fariam parte da estrutura económica, seriam apenas a sua base mas sendo-lhe pois externa, um tema que se tornou ínsito nas grandes discussões políticas dos círculos marxistas orientais, nestes meados da segunda década do novo milénio, em que intentamos a redação deste volume das Memórias.
Sim estamos a falar da China
Ainda para mais acrescido de uma teoria da história em que esta base autónoma e separada da estrutura económica se constitui, pelo menos a partir de determinado momento do crescimento, pelo desenvolvimento tecnológico, algo que já é aflorado na década de 70 por Cohen. Embora nos procuremos ater apenas às polémicas que nos envolveram, em algumas das quais participando ativamente nos nossos círculos, em outras, apenas metendo a colherada, é irresistível e não deixa de ser útil ao leitor um apontamento ou outro da projeção dos debates, dos eventos e dos factos, para lá da datação o mais rigorosa possível do relato memorial.Porque toda esta polémica prosseguiu na Europa nos anos 70, nomeadamente com o texto o texto de Althusser sobre reprodução ideológica nas instituições, com as autocríticas, com o debate com Cohen, com a resposta a John Lewis, onde o filósofo da rua d’ Ulm vai desenvolvendo, reiterando, corrigindo ou abandonando conceitos, mas sem alterar, ao que nos parece, os fundamentos mais sólidos do edifício conceptual que erigiu e em que trabalhou no relativamente curto futuro que deteve…
Outro conceito que surge aparentemente a arejar a releitura althusseriana de Marx é o conceito de rutura ou de corte epistemológico vindo diretamente de Bachelard, autor que a todos agradava e a alguns fascinava.
Convenhamos antes de tudo que, como aprofundámos, na época, em longas deambulações reflexivas, rutura e corte não são bem o mesmo conceito, pois enquanto ao primeiro, embora aparentemente mais agressivo, se associa uma fissura e uma distanciação maior ou menor dentro de um corpo que continua a existir e onde se mantém uma tensão unitária, ao segundo, mais substantivo, associa-se uma cisão, uma separação total, a criação de dois corpos independentes, extinta qualquer ligação entre eles.
Mas não sei se usávamos mais um termo ou outro conforme o sentido semiótico que pretendíamos premir, se optávamos conforme o touch of class de cada um dos vocábulos sendo o primeiro no sentido de um intelectualismo elitista e o segundo num sentido popular, ou se o fazíamos conforme a atitude que construíamos para cada um, face aos fortins do sistema que nos rodeavam que uns pretenderiam arrasar e onde outros almejariam apenas entrar e deterem um lugar.
A rutura ou corte epistemológico em Marx para com todo o passado filosófico ocorreu, segundo o Althusser de 1965, em O Capital através da descoberta e inauguração de um novo continente teórico: a história. Lembro-me de, porém, talvez ainda antes de termos em mãos as obras, sublinharmos o continente da economia política e não o da história, o que não será um erro grave, mas denotará a superficialidade com que, alguns de nós, demasiado confiantes em serem reis em terra de cegos ou pouco exigentes, tomavam os temas sem o rigor adequado e sem suficiente aprofundamento, acatando o ritmo vertiginoso a que as ideias, como que repentinamente, assolavam a costa… no caso, sobretudo a fronteira continental… Embora a substância do encontro da ciência da história das formações sociais, como novo continente teórico em Marx de onde surte o materialismo histórico, tenha sido sobretudo a superação conceptual da economia clássica pela criação de noções e conceitos inéditos de uma nova economia política, que vêm a constituir o referencial e dispositivo teóricos que lhe irão permitir edificar a teoria do capital: ou seja os conceitos de modo de produção, relações de produção e forças produtivas.
Da mesma forma que, em Bachelard, em um dado momento da história descontínua do conhecimento, surge uma rutura epistemológica, daí nascendo a ciência stricto sensu, tal como com a revolução coperniciana, a física-matemática ou a nova física do eletrão, também Marx opera essa rutura na história, dando lugar ao nascimento da economia política científica no contexto do nascimento do materialismo histórico, através de um corte que Althusser começa por colocar em um momento como vimos, mas evoluiu vindo a encontrar um processo, que começa, afinal, já não apenas em O Capital, mas logo nas Teses sobre Feuerbach e em A Ideologia alemã, outrora consideradas obras de juventude ideológicas e portanto pré-científicas, ou seja redigidas sob o peso do pensamento burguês. Por outras palavras, afinal, ao contrário do propalado contra algum jovem Marx, o corte de O Capital já está ínsito nas Teses e na Ideologia… Não é um momento mas comporta vários momentos dialéticos. Não está nos Manuscritos de 1844, mas está nos novos conceitos que fazem o referencial teórico de O Capital que já aparece em A Ideologia alemã e, digamos, no espírito das Teses…
Mas a nova economia, tal como o materialismo histórico em que se insere, não só dispõe de instrumentos teóricos e técnicos aperfeiçoados para a produção de conhecimento, como inaugura novas vias de abordagem no seu terreno, criando modelos que lhe permite reformular o seu próprio objeto, preenchendo pois, todas as condições bachelardinas para o corte epistemológico.
No plano mais estritamente filosófico, na leitura de Althusser e das suas equipas, Marx inverte radicalmente a dialética hegeliana, criando uma dialética materialista que se pretenderá o contrário da idealista de Hegel; da dialética hegeliana Marx extrairá o nódulo racional para produzir a dialética materialista rejeitando a sua casca mística, também aí se operando uma cisão epistemológica.
Ora é nesse contexto de cisão epistemológica e inauguração de um continente teórico, novinho em folha, desta vez autenticamente científico como sempre proclamaram todos os sucessivos positivismos, que pretensamente desaparecerá, no Marx maduro, todo o humanismo teórico.
Porque, na visão althusseriana, se assim não fosse, teria sido impossível a Marx escrever O Capital, esteando-se não só nas caraterísticas intrinsecamente científicas do tratado, como na afirmação de Marx, nas Notas sobre Wagner, “o meu método analítico não parte do homem, mas do período económico dado” ou nas afirmações dos Grundrisse, rascunhos de Marx que depois de reorganizados, revistos e reescritos deram origem a Elementos fundamentais para a crítica da economia política, publicados em alemão, por Moscovo, em 1941, em francês em 1968 e em português apenas em 2011, “uma sociedade não é composta de indivíduos”.
Mas também aqui, no respeitante ao surgimento do humanismo teórico de Marx, Althusser evoluirá das considerações de 1969, dos Avertissements, em que afirma que, no Marx da maturidade da Crítica ao programa de Gotha e das Notas marginais ao “Tratado de Economia Política” de Wagner, se via claramente em que sentido tendia o seu pensamento teórico, pois não se vislumbrava mais qualquer vestígio de influência humanista feuerbachiana ou hegeliana, para, uns anos depois, na fase terminal da sua trágica vida, enfatizar a dificuldade em traçar claramente uma linha de rutura na obra marxiana, reconhecendo que o pensamento de Feuerbach e de Hegel tinha sido, ao mesmo tempo que um obstáculo epistemológico, um ponto de sustentação para o desenvolvimento dos seus próprios conceitos.
Que foi sempre como nos pareceu que deveria ser entendida a continuidade da dialética hegeliana em Marx no seu melhor, e mesmo no seu pior, que será o conceito de fim da história.
Afinal o Marx de Althusser, conforme este virá a avaliar em L’ Avenir dure longtemps, de 1994, quase 30 anos depois do Pour Marx e do Lire Le Capital, apesar dos seus esforços, nunca se terá, inteira, real e definitivamente, libertado das categorias hegelianas como a alienação, o fim da história, a negação da negação, o aufhebung, categorias que, na persistente leitura althusserina, seriam de um messianismo político que não teria sentido numa posição definitivamente materialista.
Ao olhar agora ainda mais crítico e memorial deste Althusser que diríamos maduro, a rutura epistemológica de Marx foi afinal apenas tendencial, uma vez que nunca teria logrado libertar-se totalmente de Hegel, conforme vem a afirmar ainda, no mesmo ano de 1994, em Sur la Philosophie.
Como se tornou costumeiro, a revisão autocrítica de ideias em Althusser, cifra-se em mais um passo em frente, maximalizando os conceitos quando cria a expectativa contrária ou aparenta fazer o inverso: o Marx necessário, o Marx de vanguarda é, afinal, algo que… ainda estará para vir…
A rutura de Marx com o passado ideológico e a inauguração, a partir de O Capital, do novo continente da ciência da história, no seguimento do que Tales fizera com a matemática e Galileu com a física, é proclamada também, com exuberância e mesmo absolutidade, em torno do decorrente debate sobre o humanismo, cujas réplicas foram sentidas intensamente entre nós.
No que me diz respeito, foi um tema que me ocupou, nesse período e durante anos, em que, felizmente, e talvez incompreensivelmente, não assumi uma opção definitiva.
Repare-se que Althusser parece querer sossegar o mundo envolvente, arguindo a inocuidade do seu anti-humanismo classificado de teórico, mas não é por ser teórico que se torna mais inócuo ou que se poderá tornar menos iníquo… Sendo que ao desaparecer todo o humanismo teórico, o mais certo é desaparecer todo o humanismo…
Porque, por mais voltas que se dê na conceptulização da prática teórica, o teórico ou tem uma ligação de procedência e decorrência em relação à praxis ou então resvala para o ópio intelectual, para a alienação.
Mas ao contrário do marxismo humanista que, para o pensador da rua d’ Ulm, nunca foi mais do que ideologia, ou seja, na sua visão, representação distorcida das vivências e projeção da vontade, a partir da ruptura epistemológica com o ideologismo pré marxista, a que o próprio Marx pertenceu, e da inauguração do novo continente teórico, Althusser pretende retirar um marxismo científico, sem sombra de pecado, nem contaminações liberais burguesas e, pelos vistos, nem praxis, a não ser a prática teórica, o que o manterá imaculado…
“Quando Marx combate a censura, as leis feudais romanas, o despotismo prussiano, fundamenta teoricamente o seu combate político e a teoria da história que o sustenta numa filosofia do homem. A história não é inteligível a não ser pela essência do homem, que é liberdade e razão”, afirma Althusser, em 1979, atirando-se contra o jovem Marx, que até, pelo que vemos, nem sempre foi marxista…
Mas como pode o marxismo não ser humanista? Qual o sentido da sua existência senão enquanto humanismo, incluindo o profetismo de, se não libertar a humanidade, fazê-la progredir na conquista de um mundo melhor? Sem especularmos analiticamente sobre os diversos sentidos para o conceito de humanismo, em termos temporais e espaciais, é humanista o que coloca o homem como protagonista das transformações da sociedade que o têm também como objeto, ampliado, a nosso ver, num sentido amplo que contempla os animais e o equilíbrio ecológico do planeta.
Homem, agora no sentido estrito de passar a dispor por ação da sua própria libertação das condições materiais e culturais que lhe permitam exercer plenamente as pulsões da sua espiritualidade…
Althusser não é um humanista, pretende-se mesmo contra o humanismo teórico, afirma o marxismo como um anti-humanismo, porque, com efeito, não encara o marxismo como uma teoria do homem e para o homem, mas como uma teoria da economia política e do estado, o que é totalmente diferente, em oposição explícita, aliás, a textos de Mao, e até ao que se pode vislumbrar em alguns de Lenine. Por mais científico que tal se pretenda na prática teórica, as consequências na prática política são hoje bem conhecidas, como eram de resto, já em 1968, para a generalidade dos intelectuais.
Ora Garaudy, como A.G. Cohen, John Lewis, Laski, Gramsci, Togliati ou Sartre estão do outro lado, do lado do contraponto a esta deriva de grupo de tipo teoricista ou intelectualista.
É curioso, aliás, como num PCF que supostamente estaria em desestalinização, Althusser, acaba por atacar feramente o XX Congresso do PCUS, mas sem mais do que dizer que a “crítica dos erros” foi conduzida de forma estranha ao marxismo, denunciando “factos que revelam práticas da supraestrutura mas sem os relacionar”.
Podemos dizer que, pelo menos no plano teórico e em certa medida, Althusser no Pour Marx reabilita Estaline mas, no entanto, na Resposta a Jonh Lewis em 1973, mais uma vez com a sua fuga em frente metódica, considera o “desvio de Estaline” expressão de um “marxismo perverso” no qual foi posto em prática a ideia da “primazia das forças produtivas”.
A própria teoria da luta de classes teria sido apagada do centro da teoria estaliniana, para ser substituída pela da centralidade das forças produtivas, cujo desenvolvimento passaria a ser considerado pedra de toque do avanço do socialismo.
É nesse sentido que, segundo Althusser, o “desvio de Estaline” poderia ser considerado uma espécie de vingança póstuma da II Internacional, ou seja do kautsyismo e semelhantes.
O abandono da luta de classes cuja função passa a ser apenas a de legitimação ideológica a posteriori da política efetuada, significa, na visão peculiar de Althusser, que o regime de Estaline se tinha transformado num humanismo, embora cruel. Seria aliás esta fusão do economicismo e do humanismo que estaria na base da expressão estaliniana, “o homem, o capital mais precioso”…
Claro que, embora admitindo imaginariamente que Althusser possa pretender chegar à luta de classes dentro do partido, mas a que não chega na sua análise nem do PCUS nem do PCF, nos interrogaremos até ao absurdo, sobre que tipo de estalinismo teríamos tido, se ele não se tivesse desviado, ou seja, se tivesse mantido na sua “centralidade teórica”, e supõe-se prática, a luta de classes, incrementando-a socialmente e não desenvolvendo as forças produtivas? Assim como sobre o que teria acontecido se Estaline tivesse abandonado todo o seu propalado e desgraçado humanismo. E já agora, quando falamos de crueldade, será ela meramente teórica? E estaremos perante um conceito ideológico ou científico? No primeiro caso, porquê então usá-lo?
Eis um bom debate, não sei se teórico mas certamente especulativo, embora se possa entrosar com acuidade, no atual momento de desenvolvimento do único grande país do mundo, onde se mantém hasteada, nas sedes do partido no poder, a bandeira brandida na Rússia em 1917…
O início deste debate em França antecedeu Maio 68, tal, como vimos, a aparição do Pour Marx em 65, que o editor brasileiro, sob a ditadura, intitulou engenhosamente Análise crítica da teoria marxista, para a edição em português.
Um artigo de Althusser, que Erich Fromm considerou inapropriado para a sua antologia sobre marxismo e humanismo, saiu em revistas teóricas comunistas de França e Itália, recebendo em seguida uma dura crítica de Jorge Semprun, posto o que, em Março de 1965, La Nouvelle critique publica um dossiê completo sobre o assunto, com nomes como Francis Cohen, Michel Simon e Macherrey.
Mas além do debate com A.G.Cohen, as trocas de palavras, sobretudo indiretas, com Sartre e o posterior debate com John Lewis, o que mais me marcou foi o pouco do que passou do debate com Garaudy, que se travou a partir dos inícios de 1966, um filósofo que, como já disse, vinha seguindo desde Genebra através dos jornais e do Le Marxisme do XX Siècle, a quem os pecês portugueses olhavam com desconfiança, tal como de resto a Maurice Thorez de quem Garaudy foi muito próximo, e de que eu tinha consciência que era a porta de comunicação da outra fronteira do marxismo.
Ademais a posição de Garaudy tinha sido claríssima, de total condenação, em relação à invasão da Checolosváquia pela URSS e por todos os países do Pacto de Varsóvia com exceção da Roménia e exigira que o Partido tomasse uma atitude condenação da invasão e de apoio à Primavera de Dubcek.
Uma posição bastante diversa da de Althusser que apenas vagamente se pronuncia sobre a legitimidade indubitável das aspirações das massas operárias e nacionais checas, que se expressaram “talvez de forma confusa” mas sem se atravessar, pela política reformadora e independente do Partido Comunista Checoslovaco em relação a Moscovo…
Afirmando logo em seguida que o movimento nacional de massas checo, que considera não ser um movimento de intelectuais embora com intelectuais, mas um movimento popular, não podia ser confundido com as “lucubrações humanistas” dos nossos filósofos ocidentais, incluindo os comunistas. Podia e devia… Não parece que os valores propalados pelo humanismo marxista interessem mais aos intelectuais do que ao movimento popular. A avaliar pela rua d’ Ulm não se vislumbra isso. Mas Althusser não pensa assim e considera que o povo checo pretendia o socialismo e a independência nacional, não o humanismo, nem um socialismo que tinha vindo a ser desfigurado por práticas indignas. De quem? Fica por saber-se… Althusser diz em determinado passo que não é conveniente dizer tudo… E nesses silêncios, fica ambiguidade da sua análise de Estaline, da sua teoria e da prática política. Até porque a “crítica dos erros” de Estaline formulada no XX Congresso do PCUS, a seu ver, foi efetuada em termos tais que levou a um forte desencadeamento de um discurso eivado determos ideológicos e filosóficos nos próprios partidos comunistas.
Parece confirmar-se afinal que a crítica althusserina ao humanismo teórico se estende a todo o humanismo… Como não podia deixar de ser…
Quanto a Maio 68, enquanto Althusser se comprometia com o movimento enfatizando o marxismo-leninismo, aprofundando o seu anti-humanismo teórico e, pelo menos aparentemente, aproximando-se do maoísmo (talvez sobretudo de um maoísmo teórico), Garaudy opõe-se à condenação e aproveitamento do PCF do movimento estudantil e de massas, mas na perspetiva de um socialismo de rosto humano e no da fusão do pensamento marxista com alguns dos valores mais sustentados pela democracia liberal.
Diria, direi, o que sentia neste findar da adolescência, momento tão importante na vida, como o seu início…
Althusser, com seu porte elegante e brando, num cientismo ou cientifismo de um racionalismo absoluto e imperial de renovada inspiração positivista considerando toda a emoção e sentimentalidade, toda a ideologia, como uma espécie de peçonha do pensamento (deveria dizer teórico?), onde fui capaz ou tive a sorte de pressentir os perigos da razão abísmica…
Garaudy, pelo contrário, sem ponta de elegância ou de finura no porte, também sem nenhuma preocupação em apresentar as mãos finas e limpas, num intuicionismo irrequieto em buscas das chaves das portas mágicas das junções e das comunicações, certo da existência transcendental do outro como se fôssemos um outro nós, e do qual nós seremos um outro outro, ou seja um aqueloutro. É preciso sermos capazes de nos afastarmos e nos reencontrarmos connosco na solidão para acontecerem novos encontros, novas luzes, novas solidariedades. Uma velha lucerna que nunca quis deixar de manter acesa num qualquer esconso de mim mesmo.
Paradoxalmente, Althusser, o argelino ateu, Garaudy, o marselhês cristão, nas duas margens do mesmo mediterrânico rio, no mesmo passado da resistência comunista aos nazis e, de novo, nas duas bordas do percurso no partido comunista francês de onde ambos acabam por se excluirem, antes do próprio partido se excluir a si próprio da cena política e provavelmente da história futura…
Hoje, quando a memória de Garaudy enfrenta o pelotão de fuzilamento, por razões tão óbvias que não logram elevarem-se do prosaísmo, procura-se minorá-lo, afirmando que o marselhês foi do Estaline ao islamismo, nunca passou de um fanático de todos os momentos, exceto claro quando, tão reiteradamente, combateu o antissemitismo do Partido Comunista da Polónia! Ou seja, quando não convém a esta pobre e divertida França iluminada e iluminante onde, por qualquer culpa, a liberdade de expressão termina quando começa a verdade do aproveitamento da vitimação da Shoa, para a alimentação do expansionismo sionista…
E, todavia, podemos e talvez devamos olhar Garaudy na perspetiva oposta. A sua insatisfação intelectual e sentimental em relação aos problemas do homem consigo mesmo e com o mundo, na sua identidade e na sua transcendentalidade, levou-o a não ficar parado nas soluções institucionais que ia encontrando, a que ia aderindo, que ia interrogando e questionando e cuja satisfação ia superando, seguindo em novas demandas, sendo que o mundo, para ele, nunca se resumiu a Paris: poucos como Garaudy, no seu tempo, foram capazes de uma visão tão ecuménica, tão multipolar, entre os continentes. Neste sentido da coerência, o percurso e a obra de Garaudy são exemplares, porque a coerência, como mostrou Raul Proença, que eu deveria ter conhecido mais profundamente em jovem e não apenas depois dos cinquenta, não é a identidade entre o que pensávamos ontem e o que pensamos hoje, mas o acordo do que se pensa com o que se faz em cada momento. E em muitas ocasiões isso passa pela coragem e pelo incómodo de romper, mudar de opinião, de opção, fazer outra vez de novo em busca de melhor… E também não ter medo dos consensos, mesmo que plasmados em leis que se consideram imorais, opostas ao livre exame dos factos e à liberdade de pensar… Nesse aspecto são deploráveis as apreciações hostis com que os pasquinantes encheram o seu oblituário. Uns, vendidos a lóbis, outros porque lhes pagam umas migalhas para dizerem seja o que for, sendo este o estado atual do espaço que foi o da cultura…
por PEDRO BAPTISTA in “Memórias II”